Uma chave fundamental da sustentabilidade é a compreensão de que não se trata apenas de equilibrar o econômico, o social e o ambiental, mas sim de constituir novas relações de produção, tanto em termos de forma da riqueza (o que se está produzido, com quais recursos e com base em quais técnicas), e distribuição da riqueza (a que vem ou a quem beneficia?), parametros estes que possam, simultaneamente, satisfazer necessidades humanas básicas de sobrevivência e suprir, dentro das possibilidades, as preferências materiais de conforto, isso tudo de forma equilibrada e civilizada.
Nesse horizonte, a agricultura familiar, conforme vários estudos e reflexões, ganha uma perspectiva diferenciada e importância fundamental de se pensar o “desenvolvimento”. Se a primeira vista a chamada “revolução verde” supostamente trouxe maior produtividade à agricultura, tal estratégia de produtividade não foi isenta de problemáticas e contradições, pois ao contrário de efetivamente reduzir custos, os externaliza para todo o território envolvido, tanto em termos de “redução na qualidade e na quantidade de ocupações no campo”, como também numa sobrecarga indevida sobre os recursos naturais e ciclos ecológicos (expressos em diferentes situações, com na erosão, empobrecimento e contaminação do solo, comprometimento de nascentes e mananciais, destruição da biodiversidade, baixa qualidade dos alimentos produzidos).
Com essa redução artificial de custos, a monocultura ganhou competitividade e concentrou renda, enquanto o conjunto da sociedade arcou com os demais custos (desemprego, fome, doenças e todo o tipo, deformação do mercado interno).
Por sua vez a agricultura familiar ganha grande relevo especialmente em duas dimensões críticas, primeiro pelo seu caráter multifuncional e integrador de vários benefícios. Num espaço reduzido, temos a coexistência de múltiplas culturas e criações, reforçando os ciclos ecológicos que unem fauna e flora, espaço no qual as famílias buscam produzir o que lhes é necessário, dentro de uma troca constante com todas as potencialidades “oferecidas” pela natureza. Com isso, tem-se ainda a possibilidade de se reforçar práticas de conviver com o ambiente e de enriquecimento social, político e cultural de comunidades.
Outra dimensão, talvez menos óbvia a primeira vista, mas tão ou mais decisiva, trata-se mesmo de se instituir bases concretas para outro tipo efetivo de desenvolvimento.
O conceito normativo de “desenvolvimento sustentável” peca pela sua excessiva abstração e apelo emocional, deixando, em segundo relevo, questões estruturais e determinantes.
Entre tais questões, há o dilema perigoso e pouco percebido entre a dinâmica econômica da acumulação, baseada necessariamente no consumo crescente, com o esgotamento crítico da capacidade de carga do planeta (em termos de uso dos recursos naturais e processamento dos seus passivos). Reduzir o consumo em nome da ecologia tende a levar a crises econômicas, o que se traduz também em crises sociais, como o desemprego. Promover o crescimento pelo crescimento, apesar dos benefícios imediatos, também tende a levar, no médio e longo prazo, a outras crises sociais (deterioramento das condições de vida, poluição das águas, caos urbano, aumento de epidemias, novos custos econômicos devido aos “passivos” ambientais, aumento do custo de vida, reversão na produtividade na agricultura, instabilidade climática crescente). Tais problemas estão centrados numa apologia de civilização baseada num mundo urbano (supostamente desconexo com os sistemas ecológicos) e na industrialização (exploração ilimitada).
Dessa forma, provavelmente a chave para um tipo diferenciado de desenvolvimento, centrado no valor trabalho, na satisfação legítima de necessidades humanas, uso sustentável de recursos naturais e na aplicação intensiva de tecnologia e conhecimento sistêmicos, ou seja, que se possa de fato sustentar, esteja justamente no mundo rural, dito de forma mais concreta, na agricultura familiar.
Isso porque, como vimos, a agricultura familiar (que pode inclusive se sofisticar em estruturas comunitárias) é o locus direto de experimentação e inovação nas relações simultâneas, e necessárias, entre as pessoas, entre o ser genérico “homem” e a ecologia, e entre a sociedade e a natureza (em termos agregados e dinâmicos). Além disso, é interessante notar que o campo igualmente pode ser um locus de moradia e convivência tão ou mais rico que nas cidades, ou seja, questionar a concentração exagerada dos quesitos básicos de sociabilidade: trabalho, serviços, habitação, integração, cultura, educação... apenas nos centros urbanos.
Qualificar a reforma agrária com o macro-objetivo histórico da emancipação social significa almejarmos um patamar superior de debates e projetos, que possam romper as correntes do pré-concebido, e das ideologias centradas meramente na acumulação pela acumulação e na desqualificação das alternativas.
Pensar a reforma agrária como uma estratégia de promoção de novos horizontes de mudança ou mesmo de desenvolvimento, em termos de equacionar conhecimentos, legitimidade social, produção de riquezas e os fluxos ecológicos de suporte a vida (inclusive e especialmente da vida humana), é ir além da distribuição (ou devolução) das terras ao trabalhador rural, mas potencializar novas cadeias produtivas, promover e aplicar novos conhecimentos científicos, viabilizar políticas de enriquecimento social, cultural, comunitário e político, novo complexo de sociabilidade rural... entre outros horizontes a serem inventados. Uma imensa oportunidade, pouco percebida e valorizada.
Prof. Édi Augusto Benini
P.S> Agradeço as várias opiniões e contribuições, que sem dúvida estão a ajudar a melhorar ainda mais o texto e o argumento defendido.
Páginas Vinculadas
Página específica para a 3ª edição do curso de especialização em Gestão Pública e Sociedade:
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário