Páginas Vinculadas

Página específica para a 3ª edição do curso de especialização em Gestão Pública e Sociedade:

sexta-feira, 19 de junho de 2009

"O TERCEIRO SETOR": SOLUÇÃO PARA O DESEMPREGO OU EFEITO CURATIVO?

Texto para debate:


"O TERCEIRO SETOR": SOLUÇÃO PARA O DESEMPREGO OU EFEITO CURATIVO?

Autor: Prof. Felipe Luiz Gomes e Silva (disc. análise crítica da teoria organizacional)


O objetivo deste artigo é realizar uma breve reflexão sobre o significado do conceito "terceiro setor" . O que é "terceiro setor"? Para Fernandes (1997), é uma expressão de linguagem que foi traduzida da língua inglesa, sendo "portadora de uma ambiciosa mensagem: além do Estado e do mercado há um terceiro personagem" (p.9). Ao lado dos sindicatos e de várias associações profissionais há outros recortes associativos que não se estruturam segundo a clássica divisão capital versus trabalho (FERNANDES, 1997). Segundo Coelho (2000), esta expressão foi usada pela primeira vez, na década de 1970, por pesquisadores estadunidenses. No entanto, há indicações de que o termo surgiu, inicialmente, como uma referência feita pelo magnata Rockfeller à vitalidade da comunidade estadunidense (LANDIM, 1999).

Sabemos que qualquer conceito é apenas uma aproximação da realidade, a qual pode se manifestar de variadas formas, ou seja, depende muito do contexto histórico, social e político, do tempo e do lugar; a palavra é um instrumento ideológico por excelência (BAKHTIN, 1997).
O pesquisador Rubem C. Fernandes (1994,p.21) assim demarca as fronteiras entre o "Primeiro, Segundo e Terceiro Setores" :





Como podemos observar, definido pelos seus fins, o denominado "terceiro setor" é composto por agentes privados que buscam a realização de objetivos coletivos e /ou públicos. Desta forma, há, segundo esse autor , clara coincidência com os objetivos do Estado.

O segundo setor é organicamente composto por agentes que buscam objetivos privados, ou seja, orienta-se, primariamente, pelos interesses do mercado, pauta-se pela competição e pelos lucros. Quando os agentes estatais buscam fins privados encontram-se no espaço da corrupção, dito de outra forma, as condutas pautam-se pelas "políticas de favores", pelo clientelismo, nepotismo e personalismo.

Afirma Fernandes (1994) que o "terceiro setor denota um conjunto de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de bens e serviços públicos. Este é o sentido positivo da expressão. Bens e serviços públicos, neste caso, implicam uma dupla qualificação: não geram lucros e respondem a necessidades coletivas" ( p.21). "O conceito é certamente amplo e passível de qualificações sob diversos aspectos. As variações ocorrem, e os casos fronteiriços suscitam disputas polêmicas, como acontece com qualquer classificação" (1995, p.32).

Como exemplos de instituições que pertencem ao "terceiro setor" podemos citar: a Fundação Abrinq (São Paulo), o Projeto Axé de Educação Infantil e Adolescente (Salvador), o Orfanato Renascer (Araraquara), o Instituto Ethos (São Paulo) e também todo um conjunto de entidades assistenciais e caritativas que competem entre si na busca de recursos financeiros e de parcerias no mercado solidário.

É importante lembrar que a Câmara Americana do Comércio criou, em 1982, o Prêmio Eco, que tem por objetivo valorizar iniciativas de empresas que apóiam e/ou desenvolvem projetos sociais. A Fundação Roberto Marinho, a Fundação Acesita e a Schwab são bons exemplos de estimuladores do desenvolvimento do "mercado solidário".

Assim, em razão da diversidade de instituições e de objetivos, a noção "terceiro setor" é imprecisa e problemática. Para nós, a questão não se resume a uma mera dificuldade formal de classificação, como já apontamos acima, resulta de seu "caráter eminentemente ideológico"; ideológico no sentido de ocultamento da realidade concreta, ou seja, a não superação do mundo da aparência.

Na realidade, as organizações abrangidas por essa noção são diversas e diferenciadas, heterogêneas e até contraditórias. Apresentam diferenças em suas origens históricas, em suas finalidades, em suas maneiras de se relacionar com o Estado, com a sociedade e com o mercado. De modo geral têm seu campo de trabalho limitado e condicionado pelas fontes de financiamento e pelo nível de pobreza presente nas diversas nações e regiões (SILVA, 2004).

De acordo com Oliveira (1995, p.7), as Organizações Não-Governamentais, por exemplo, "são importantes elementos de ativação da sociedade em geral quando fazem o trabalho de passagem das carências para os direitos".
Indagamos: quantas organizações, de fato, superam o assistencialismo, realizam os direitos sociais e ultrapassam a filantropia e/ou mero gerenciamento da pobreza?
Ressaltemos que, para Fernandes (1994),o "terceiro setor" não pretende substituir a ação do Estado, a sua dinâmica deve ser complementar; é fruto das insuficiências e dos limites da atuação do mercado.

Mas, como sabemos, independentemente da vontade e das boas ações humanas, o denominado "terceiro setor" tem, na realidade, crescido em conseqüência das perversas políticas neoliberais. Com a "crise" do Estado de Bem Estar Social (nos países centrais) e do Estado Desenvolvimentista (nos países periféricos), a ideologia do "terceiro setor" passa a ser funcional/operacional às políticas do capitalismo neoliberal, ocultando as raízes estruturais do desemprego, da precarização do trabalho, da pobreza e da indigência (MONTÃNO, 2002; SILVA, 2004, 2006).

O Estado não é um setor autônomo voltado, necessariamente, para o bem estar social. No capitalismo monopolista, articula, de forma particular, as funções econômicas e políticas (NETTO, 2005). Os voluntários que atuam no denominado "terceiro setor" contra a fome e a miséria só na aparência são livres cidadãos.
A questão fundamental é: sem romper com o modo de produção capitalista, será possível combater a indigência e construir uma nova sociabilidade humana por meio das ações do primeiro, segundo e terceiro setores?

Para Claus Offe a resposta é positiva, uma nova sociabilidade será construída mediante uma sintonia fina entre o primeiro, segundo e terceiro setores. Atores coletivos da sociedade civil demarcarão as fronteiras e a relação entre o Estado, o mercado e o "terceiro setor", todos comporão, de forma harmônica, um arranjo social novo e superior. Grande parte dos desempregados será cuidada pela solidariedade religiosa ( 1999, apud SILVA, 2006, p. 45).
O estadunidense J. Rifkin também defende a tese da possibilidade de humanizar o capitalismo por meio da articulação dos três setores; os donos do capital, as corporações, deverão reduzir a jornada do trabalho e investir em ações comunitárias solidárias. Para ele, com o crescimento de desemprego estrutural e da miséria, estamos diante de dois riscos: o crescimento da população carcerária e a emergência de ideologias políticas extremistas. Só as ações do "terceiro setor" salvarão o capitalismo e a democracia (RIFKIN,1997).

Como é evidente, o acelerado crescimento do chamado "terceiro setor" é fruto da lógica da acumulação ampliada do capital, do aumento da população que vive no inferno da indigência e que constitui o peso morto do exército de reserva. Segundo R. Castel (1998), são todos os supranumerários, os não empregáveis, inúteis para o mundo; em 1988, na França, somente um estagiário em quatro e um trabalhador precário em três encontraram um emprego estável ao final de um ano. Sendo assim, a expressão interino permanente não é um jogo de palavras.

O pauperismo do século XXI é produzido pela riqueza concentrada nas mãos de poucos, o que, de fato, é um efeito da própria natureza do modo de produção capitalista, da dinâmica da economia monopolista que opera sob um regime de acumulação mundial predominantemente financeiro.
No Brasil, por exemplo, sãos gastos R$ 7 bilhões com 11,1 milhões de famílias integradas no Programa Bolsa Família, enquanto R$ 110 bilhões remuneram os poderosos detentores dos títulos da dívida pública. Entre janeiro de 2003 e outubro de 2006, as empresas transnacionais, sediadas no país, repatriaram nada menos do que US$ 18,9 bilhões,112% a mais do que a era Fernando Henrique Cardoso (1998-2002).

Portanto, o pauperismo e a indigência (superpopulação supérflua) da América Latina e do "terceiro mundo" somente serão superadas com a construção de uma nova sociabilidade humana livre da lógica da acumulação, do desenvolvimento das forças destrutivas e da dependência do capital mundial. O assistencialismo, a mera caridade legal e a filantropia, práticas inerentes ao chamado "terceiro setor" e às políticas "pseudoliberais" (SARTRE,1987), talvez possam, por algum tempo, "animar" parte da sociedade, e amenizar o sofrimento humano, simples efeito curativo (KURZ, 1997).

Mas nem como efeito curativo tem cumprido sua promessa de incluir no mercado formal os desempregados, a produção em escala de trabalhadores precários no terceiro mundo e na América Latina tem sido acelerada pela aplicação dos Planos de Ajustes Estruturais (superávit fiscal, redução do déficit da balança comercial, desmontagem da previdência, liberalização financeira e comercial, (des)regulamentação dos mercados e a privatização das empresas estatais) "recomendados " pelo Banco Mundial. As pesquisas do Observatório Urbano das Nações Unidas (ONU) alertam que em 2020 a pobreza no mundo atingirá cerca de 45% do total de habitantes das cidades.

Em Lagos, Nigéria, a classe média desapareceu, o lixo produzido pelos poucos e cada vez mais ricos compõe a cesta de alimentos que freqüenta a mesa dos trabalhadores (as) pobres. No Brasil, o denominado mercado informal já atinge mais de 51% da população, na América Latina, 57% e na África, 95% (DAVIS, 2004).

Empresas transnacionais ameaçam o os povos e a natureza na América Latina, como, por exemplo, a terceira empresa produtora de ouro do mundo, a canadense Barrick Gold Corporation, com o possível uso de drenagens ácidas, coloca 70 mil habitantes do vale do rio Huasco, no Chile, em situação de risco. Há no Chile 47 empresas multinacionais mineradoras, as quais retiraram, nos últimos 12 anos, 23 toneladas de minerais, no valor de 43 bilhões de dólares, e, com apoio do poder local, sem pagar impostos; dois terços dos trabalhadores são temporários, não têm direitos trabalhistas e recebem um quinto do que ganham os mineiros contratados pela Codelco, empresa estatal (DANTAS, 2007).

Sabemos que muitas corporações internacionais ajudam programas de desenvolvimento local, organizações caritativas, instituições culturais, pequenas cooperativas populares, etc. São generosas práticas de "governança corporativa" que integram seus programas de marketing social. Mas como convencê-las a abrirem mão dos seus lucros extraordinários, praticarem justiça social e respeitarem o ambiente natural dos países do terceiro mundo? Elas apoiarão programas de distribuição de renda, reforma agrária e urbana, melhorias reais na educação e na saúde públicas universais?

Dificilmente os agentes e os pesquisadores universitários que apoiam as ações do "terceiro setor" perguntam quais são as origens históricas e estruturais da pobreza e da miséria dos países dependentes. É preciso não abandonar a visão de totalidade social e considerar que o local não pode ser entendido como divorciado do mundial (local míope) e, principalmente, da livre presença das transnacionais e das transações financeiras globais que, junto com os Programas de Ajuste Estrutural (PAEs), recomendados pelo Banco Mundial, provocam devastadores ciclones sociais ( DAVIS, 2004;MÉSZÁROS, 2006).

Atualmente, cerca de 180 milhões de pessoas estão em evidente situação de desemprego aberto, isto é, procurando e não encontrando trabalho seguro, e somente 20% da população mundial tem acesso à proteção social adequada. (Organização Internacional do Trabalho � 9/11/2006).
Mesmo nos Estados Unidos da América, lócus privilegiado das ações ditas solidárias, o "terceiro setor" não superou os problemas sociais. Os Estados Unidos apresentam a vigésima taxa de mortalidade infantil do mundo, 1/3 das crianças em idade escolar estão sem vacinas básicas, 50% dos esquizofrênicos vivem nas prisões ou nas ruas, 31 milhões de seres humanos não têm cobertura de saúde, 5 milhões sem tetos, etc.(PETRAS,1996).

Em resumo, as ações locais, com ou sem apoio das corporações e do Banco Mundial, são limitadas e não questionam as raízes estruturais do desemprego, da pobreza e da precarização do trabalho. Muitas empresas, na realidade, enquanto praticam o denominado "marketing do bem" e a "solidariedade que aparece", (BUCCI, 2004) exploram ao máximo os seres humanos e os recursos naturais da América Latina e do terceiro mundo.

Muitas destas ações corporativas têm por objetivos claros "educar" lideranças rebeldes e prevenir a emergência de lutas sociais radicais, "são proponentes de novos contratos que restabelecem vínculos de solidariedade transclassistas e comunidades pensadas com inteira abstração dos "novos" dispositivos de exploração do trabalho (NETTO,2005,p.160), a "flexploração" e a terceirização dos operários (SILVA, 2004).

Será possível realizar, no século XXI, a utopia da cidadania plena - igualdade, fraternidade e liberdade - no interior da ordem social capitalista contemporânea?


Referências Bibliográficas:

BAKTHIN, Mikhail Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo Hucitec, 1997.
BUCCI, Eugenio A solidariedade que não teme aparecer In: Kehl, Maria R. e Bucci, E. (Orgs.) Videologias: ensaios sobre a televisão São Paulo: Boitempo, 2004. p.180 � 7.
BARRICK GOLD CORPORATION � Corporate Responsability, 2007. Disponível em: http://www.barrick/.com > Acesso em 07/04/07.
CASTEL, Robert Metamorfoses da questão social Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
COELHO, Simone de C. T. Terceiro Setor: um estudo comparado entre o Brasil e os Estados Unidos São Paulo: SENAC, 2000
DAVIS, Mike Planeta Favela São Paulo: Boitempo, 2004.
DANTAS, Pedro Desastre à vista. Revista Fórum, n. 48, março, ano 5, 2007, p.30-31.
FERNANDES, Rubem C. - " O que é Terceiro Setor? In: 3 Setor: Desenvolvimento Social Sustentado (org) Ioschpe, E. R. de Janeiro: Paz e Terra,1997.
FERNANDES, Rubem C. Privado Porém Público: O Terceiro Setor na América Latina, R. Janeiro: Relume - Dumará, 1994.
FERNANDES, Rubem C. - Elos de Uma Cidadania Planetária. Revista de Ciências Sociais 28-10/jun/1995.
LANDIM, Leilah Notas em torno do terceiro setor e outras expressões estratégicas, "O Social em Questão", n.4, "Enfrentamentos da questão social". Rio de Janeiro, Departamento de Serviço Social, PUC- Rio, 1999.
MÉSZÁROS, István O século XXI: socialismo ou barbárie. São Paulo: Boitempo,2006.
MONTAÑO, Carlos Terceiro Setor Questão Social São Paulo: Cortez, 2002.
NETTO, José Paulo � Capitalismo Monopolista e Serviço Social São Paulo: Cortez, 2005.
PETRAS, James Intelectuais: uma crítica marxista aos pós-marxistas. Revista Lutas Sociais n. 1- 2 semestre, p. 1-27, São Paulo: Xmã,1996.
OLIVEIRA, Francisco A questão do Estado: Vulnerabilidade Social e Carência de Direitos- CNAS. Cadernos ABONG, out.1995.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 3/11//2006 Disponível em : http://www.oitbrasil.org.br/>. Acesso em 9 nov. 2006.
RIFKIN, Jeremy Identidade e Natureza do Terceiro Setor In: 3 Setor: Desenvolvimento Social Sustentado (Org.) Ioschpe, E. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
SARTRE, Jean � Paul Sartre no Brasil a conferência de Araraquara São Paulo: UNESP, 1986.
SILVA, Felipe Luiz Gomes e A fábrica como agência educativa. Araraquara: Laboratório Editorial/ FCL/UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2004.
SILVA, Felipe Luiz G. e Os profetas de uma terra prometida: o "terceiro setor" in: Vieitez, Candido G. e Dal Ri Neusa M. (orgs) Organizações e Democracia, UNESP Marília, v.7, n.1/2, 33-50, Jan.-Jun.-Dez., 2006.
KURZ, Robert Para além do Estado e do mercado e Torpor do Capitalismo In: Os últimos combates, Rio de Janeiro. Vozes,1997.

Um comentário: