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Página específica para a 3ª edição do curso de especialização em Gestão Pública e Sociedade:

sábado, 6 de junho de 2009

Texto para Debate: A delinquencia Acadêmica

A Delinqüência Acadêmica
Maurício Tragtenberg


O tema é amplo: a relação entre a dominação e o saber, a relação entre o intelectual e a
universidade como instituição dominante ligada à dominação, a universidade antipovo.

A universidade está em crise. Isto ocorre porque a sociedade está em crise; através da
crise da universidade é que os jovens funcionam detectando as contradições profundas
do social, refletidas na universidade. A universidade não é algo tão essencial como a
linguagem; ela é simplesmente uma instituição dominante ligada à dominação. Não é uma
instituição neutra; é uma instituição de classe, onde as contradições de classe aparecem.

Para obscurecer esses fatores ela desenvolve uma ideologia do saber neutro, científico, a
neutralidade cultural e o mito de um saber “objetivo”, acima das contradições sociais.

No século passado, período do capitalismo liberal, ela procurava formar um tipo de
“homem” que se caracterizava por um comportamento autônomo, exigido por suas
funções sociais: era a universidade liberal humanista e mandarinesca. Hoje, ela forma a
mão-de-obra destinada a manter nas fábricas o despotismo do capital; nos institutos de
pesquisa, cria aqueles que deformam os dados econômicos em detrimento dos
assalariados; nas suas escolas de direito forma os aplicadores da legislação de exceção;
nas escolas de medicina, aqueles que irão convertê-la numa medicina do capital ou
utilizá-la repressivamente contra os deserdados do sistema.

Em suma, trata-se de “um complô de belas almas” recheadas de títulos acadêmicos, de um doutorismo substituindo o bacharelismo, de uma nova pedantocracia, da produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que espécie for.

Na instância das faculdades de educação, forma-se o planejador tecnocrata a quem
importa discutir os meios sem discutir os fins da educação, confeccionar reformas
estruturais que na realidade são verdadeiras “restaurações”. Formando o professorpolicial,
aquele que supervaloriza o sistema de exames, a avaliação rígida do aluno, o
conformismo ante o saber professoral. A pretensa criação do conhecimento é substituída
pelo controle sobre o parco conhecimento produzido pelas nossas universidades, o
controle do meio transforma-se em fim, e o “campus” universitário cada vez mais parece
um universo concentracionário que reúne aqueles que se originam da classe alta e média,
enquanto professores, e os alunos da mesma extração social, como “herdeiros” potenciais
do poder através de um saber minguado, atestado por um diploma.

A universidade classista se mantém através do poder exercido pela seleção dos
estudantes e pelos mecanismos de nomeação de professores. Na universidade
mandarinal do século passado o professor cumpria a função de “cão de guarda” do
sistema: produtor e reprodutor da ideologia dominante, chefe de disciplina do estudante.
Cabia à sua função professoral, acima de tudo, inculcar as normas de passividade,
subserviência e docilidade, através da repressão pedagógica, formando a mão-de-obra
para um sistema fundado na desigualdade social, a qual acreditava legitimar-se através
da desigualdade de rendimento escolar; enfim, onde a escola “escolhia” pedagogicamente
os “escolhidos” socialmente.

A transformação do professor de “cão de guarda” em “cão pastor” acompanha a
passagem da universidade pretensamente humanista e mandarinesca à universidade
tecnocrática, onde os critérios lucrativos da empresa privada, funcionarão para a
formação das fornadas de “colarinhos brancos” rumo às usinas, escritórios e
dependências ministeriais. É o mito da assessoria, do posto público, que mobiliza o
diplomado universitário.

A universidade dominante reproduz-se mesmo através dos “cursos críticos”, em que o
juízo professoral aparece hegemônico ante os dominados: os estudantes. Isso se realiza
através de um processo que chamarei de “contaminação”. O curso catedrático e
dogmático transforma-se num curso magisterial e crítico; a crítica ideológica é feita nos
chamados “cursos críticos”, que desempenham a função de um tranqüilizante no meio
universitário. Essa apropriação da crítica pelo mandarinato universitário, mantido o
sistema de exames, a conformidade ao programa e o controle da docilidade do estudante
como alvos básicos, constitui-se numa farsa, numa fábrica de boa consciência e
delinqüência acadêmica, daqueles que trocam o poder da razão pela razão do poder. Por
isso é necessário realizar a crítica da crítica-crítica, destruir a apropriação da crítica pelo
mandarinato acadêmico. Watson demonstrou como, nas ciências humanas, as pesquisas
em química molecular estão impregnadas de ideologia. Não se trata de discutir a
apropriação burguesa do saber ou não-burguesa do saber, mas sim a destruição do
“saber institucionalizado”, do “saber burocratizado” como único “legítimo”. A apropriação
universitária (atual) do conhecimento é a concepção capitalista de saber, onde ele se
constitui em capital e toma a forma nos hábitos universitários.

A universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela
ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma. Esse modo de produção
determina o tipo de formação através das transformações introduzidas na escola, que
coloca em relação mestres e estudantes. O mestre possui um saber inacabado e o aluno
uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem ignorância absoluta. A relação de
saber não institui a diferença entre aluno e professor, a separação entre aluno e professor
opera-se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames – “esse
batismo burocrático do saber”. O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a
entrevista, que cumpre as mesmas funções de “exclusão” que possui a empresa em
relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela “exclui” o candidato. Para o
professor, há o currículo visível, publicações, conferências, traduções e atividade didática,
e há o currículo invisível – esse de posse da chamada “informação” que possui espaço na
universidade, onde o destino está em aberto e tudo é possível acontecer. É através da
nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a
burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de submissão e
conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos professores, já
constituem um sistema ideológico. Mas, em que consiste a delinqüência acadêmica?

A “delinqüência acadêmica” aparece em nossa época longe de seguir os ditames de Kant:
“Ouse conhecer.” Se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes de nossa
época é fora da universidade que irão encontrá-los. A bem da verdade, raramente a
audácia caracterizou a profissão acadêmica. Os filósofos da revolução francesa se
autodenominavam de “intelectuais” e não de “acadêmicos”. Isso ocorria porque a
universidade mostrara-se hostil ao pensamento crítico avançado. Pela mesma razão, o
projeto de Jefferson para a Universidade de Virgínia, concebida para produção de um
pensamento independente da Igreja e do Estado (de caráter crítico), fora substituído por
uma “universidade que mascarava a usurpação e monopólio da riqueza, do poder”. Isso
levou os estudantes da época a realizarem programas extracurriculares, onde Emerson
fazia-se ouvir, já que o obscurantismo da época impedia a entrada nos prédios
universitários, pois contrariavam a Igreja, o Estado e as grandes “corporações”, a que
alguns intelectuais cooptados pretendem que tenham uma “alma”. [1]

Em nome do “atendimento à comunidade”, “serviço público”, a universidade tende cada
vez mais à adaptação indiscriminada a quaisquer pesquisas a serviço dos interesses
econômicos hegemônicos; nesse andar, a universidade brasileira oferecerá disciplinas
como as existentes na metrópole (EUA): cursos de escotismo, defesa contra incêndios,
economia doméstica e datilografia em nível de secretariado, pois já existe isso em
Cornell, Wisconson e outros estabelecimentos legitimados. O conflito entre o técnico e o
humanismo acaba em compromisso, a universidade brasileira se prepara para ser uma
“multiversidade”, isto é, ensina tudo aquilo que o aluno possa pagar. A universidade, vista
como prestadora de serviços, corre o risco de enquadrar-se numa “agência de poder”,
especialmente após 68, com a Operação Rondon e sua aparente democratização, só nas
vagas; funciona como tranqüilidade social. O assistencialismo universitário não resolve o
problema da maioria da população brasileira: o problema da terra.

A universidade brasileira, nos últimos 15 anos, preparou técnicos que funcionaram como
juízes e promotores, aplicando a Lei de Segurança Nacional, médicos que assinavam
atestados de óbito mentirosos, zelosos professores de Educação Moral e Cívica
garantindo a hegemonia da ideologia da “segurança nacional” codificada no Pentágono.
O problema significativo a ser colocado é o nível de responsabilidade social dos
professores e pesquisadores universitários. A não preocupação com as finalidades sociais
do conhecimento produzido se constitui em fator de “delinqüência acadêmica” ou da
“traição do intelectual”. Em nome do “serviço à comunidade”, a intelectualidade
universitária se tornou cúmplice do genocídio, espionagem, engano e todo tipo de
corrupção dominante, quando domina a “razão do Estado” em detrimento do povo. Isso
vale para aqueles que aperfeiçoam secretamente armas nucleares (M.I.T.), armas
químico-biológicas (Universidade da Califórnia, Berkeley), pensadores inseridos na Rand
Corporation, como aqueles que, na qualidade de intelectuais com diploma acreditativo,
funcionam na censura, na aplicação da computação com fins repressivos em nosso país.

Uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o
senso da discriminação ética e da finalidade social de sua produção – é uma
multiversidade que se vende no mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o fim da
encomenda, isso coberto pela ideologia da neutralidade do conhecimento e seu produto.
Já na década de 30, Frederic Lilge [2] acusava a tradição universitária alemã da
neutralidade acadêmica de permitir aos universitários alemães a felicidade de um
emprego permanente, escondendo a si próprios a futilidade de suas vidas e seu trabalho.

Em nome da “segurança nacional”, o intelectual acadêmico despe-se de qualquer
responsabilidade social quanto ao seu papel profissional, a política de “panelas”
acadêmicas de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto
qualquer se constituem no metro para medir o sucesso universitário. Nesse universo não
cabe uma simples pergunta: o conhecimento a quem e para que serve? Enquanto este
encontro de educadores, sob o signo de Paulo Freire, enfatiza a responsabilidade social
do educador, da educação não confundida com inculcação, a maioria dos congressos
acadêmicos serve de “mercado humano”, onde entram em contato pessoas e cargos
acadêmicos a serem preenchidos, parecidos aos encontros entre gerentes de hotel, em
que se trocam informações sobre inovações técnicas, revê-se velhos amigos e se
estabelecem contatos comerciais.

Estritamente, o mundo da realidade concreta e sempre muito generoso com o acadêmico,
pois o título acadêmico torna-se o passaporte que permite o ingresso nos escalões
superiores da sociedade: a grande empresa, o grupo militar e a burocracia estatal. O
problema da responsabilidade social é escamoteado, a ideologia do acadêmico é não ter
nenhuma ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à política do poder.

Diferentemente, constitui, um legado da filosofia racionalista do século XVIII, uma
característica do “verdadeiro” conhecimento o exercício da cidadania do soberano direito
de crítica questionando a autoridade, os privilégios e a tradição. O “serviço público”
prestado por estes filósofos não consistia na aceitação indiscriminada de qualquer projeto,
fosse destinado à melhora de colheitas, ao aperfeiçoamento do genocídio de grupos
indígenas a pretexto de “emancipação” ou política de arrocho salarial que converteram o
Brasil no detentor do triste “record” de primeiro país no mundo em acidentes de trabalho.
Eis que a propaganda pela segurança no trabalho emitida pelas agências oficiais não
substitui o aumento salarial.

O pensamento está fundamentalmente ligado à ação. Bergson sublinhava no início do
século a necessidade do homem agir como homem de pensamento e pensar como
homem de ação. A separação entre “fazer” e “pensar” se constitui numa das doenças que
caracterizam a delinqüência acadêmica – a análise e discussão dos problemas relevantes
do país constitui um ato político, constitui uma forma de ação, inerente à responsabilidade
social do intelectual. A valorização do que seja um homem culto está estritamente
vinculada ao seu valor na defesa de valores essenciais de cidadania, ao seu exemplo
revelado não pelo seu discurso, mas por sua existência, por sua ação.

Ao analisar a “crise de consciência” dos intelectuais norte-americanos que deram o aval
da “escalada” no Vietnã, Horowitz notara que a disposição que eles revelaram no
planejamento do genocídio estava vinculada à sua formação, à sua capacidade de discutir
meios sem nunca questionar os fins, a transformar os problemas políticos em problemas
técnicos, a desprezar a consulta política, preferindo as soluções de gabinete,
consumando o que definiríamos como a traição dos intelectuais. É aqui onde a
indignidade do intelectual substitui a dignidade da inteligência.

Nenhum preceito ético pode substituir a prática social, a prática pedagógica.
A delinqüência acadêmica se caracteriza pela existência de estruturas de ensino onde os
meios (técnicas) se tornam os fins, os fins formativos são esquecidos; a criação do
conhecimento e sua reprodução cede lugar ao controle burocrático de sua produção como
suprema virtude, onde “administrar” aparece como sinônimo de vigiar e punir – o
professor é controlado mediante os critérios visíveis e invisíveis de nomeação; o aluno,
mediante os critérios visíveis e invisíveis de exame. Isso resulta em escolas que se
constituem em depósitos de alunos, como diria Lima Barreto em “Cemitério de Vivos”.
A alternativa é a criação de canais de participação real de professores, estudantes e
funcionários no meio universitário, que oponham-se à esclerose burocrática da instituição.
A autogestão pedagógica teria o mérito de devolver à universidade um sentido de
existência, qual seja: a definição de um aprendizado fundado numa motivação
participativa e não no decorar determinados “clichês”, repetidos semestralmente nas
provas que nada provam, nos exames que nada examina, mesmo porque o aluno sai da
universidade com a sensação de estar mais velho, com um dado a mais: o diploma
acreditativo que em si perde valor na medida em que perde sua raridade.

A participação discente não constitui um remédio mágico aos males acima apontados,
porém a experiência demonstrou que a simples presença discente em colegiados é fator
de sua moralização.

____________
* Texto apresentado no I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, em Campinas-SP.
Publicado em: TRAGTENBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. Sã Paulo: Editores
Associados; Cortez, 1990, 2ª ed. (Coleção teoria e práticas sociais, vol 1)
[1] Kaysen pretende atribuir uma “alma”à corporação multinacional; esta parece não preocupar-se com
tal esforço construtivo do intelectual.
[2] Frederic LILGE, The Abuse of Learning: The Failure of German University. Macmillan, New York, 1948

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