A
FORÇA E A FRAQUEZA DA CIDADANIA Silvio
Caccia Bava
Sociólogo,
Mestre em Ciência Política, pesquisador do Instituto
Pólis, diretor da ABONG (Associação Brasileira
de Organizações Não Governamentais).
A
defesa da cidadania se tornou central no debate político atual
com a transformação crescente das nossas sociedades em
sociedades de mercado, marcadas pelas estratégias individuais,
pela competição, pela violência. Sociedades que
são cada vez mais comandadas pelos interesses das grandes
corporações transnacionais e que perdem a cada dia sua
capacidade de regulação pública democrática.
Feixes de fibras óticas, laser, chips, o poder
virtual. As mudanças tecnológicas e a concentração
do capital criam uma nova realidade onde as instituições
reguladoras do interesse público são capturadas por
esse novo poder e deixam de cumprir o papel de representação
que lhes era reservado algumas décadas atrás. As
instituições democráticas que temos tornaram-se
obsoletas. E, por conta desta nova realidade, a defesa da cidadania
na forma como vem se apresentando, embora seja estratégica
para garantir a possibilidade da construção
democrática, é um apelo saudosista à
contratualidade de um modelo de democracia que perdeu seu vigor pela
violência praticada contra os direitos humanos, sociais e
políticos.
O Estado não desapareceu, nem se
tornou mínimo. Ele serve prioritariamente aos interesses do
capital rentista internacional, serve também para aplacar os
conflitos. Não funciona mais como expressão da vontade
dos cidadãos. Talvez nunca na verdade tenham expressado a
vontade de todos os cidadãos, ou mesmo de uma maioria. Mas, de
todas maneiras, é preciso reconhecer que a concentração
de capital e a primazia do poder econômico adquirem uma
velocidade e uma importância cada vez maiores. Essa
concentração de poder regida pela ótica do lucro
promove uma dualização cada vez maior em nossas
sociedades, deixa os ricos mais ricos e promove uma pauperização
generalizada que rebaixa à condição de
miseráveis milhões de seres humanos.
Há
algumas décadas a América Latina propunha a revolução
socialista como processo de mudança social. E as nossas elites
reagiam com regimes ditatoriais, que no entanto estendiam a cobertura
das políticas públicas para as massas empobrecidas.
Desarticulava-se assim a capacidade autônoma de expressão
da cidadania e, ao mesmo tempo, os Estados nacionais, num esforço
de modernização autoritária, estendiam a
cobertura de benefícios, que se apresentavam como concessões
outorgadas pelos poderosos.
Hoje vivemos a crise dos
paradigmas de mudança social. Para onde orientar os esforços
da construção democrática? E percebemos a
fragmentação e o enfraquecimento das entidades e
instituições da sociedade civil que, no passado, por
força dos conflitos que ativaram, garantiram conquistas
sociais e a sua afirmação enquanto direitos. Partidos
políticos, sindicatos, associações de todo tipo
vêem-se esvaziados de seu poder convocatório para
promover a mobilização dos cidadãos. Estes, por
sua vez, expressam seu desencanto, seu descrédito na
capacidade transformadora da ação política,
expressam mesmo um desencanto crescente com a própria
democracia.
O tema da mudança social parece cada vez
mais distante neste novo mundo neoliberal nessa situação
de desalento, de reacionarismo, de violência, de privatização
da vida. É preciso recorrer aos ensinamentos da história
da humanidade e perceber que mesmo nas situações as
mais adversas foi a mobilização da sociedade que criou
novas possibilidades históricas.
A luta pela cidadania
se apresenta hoje como uma estratégia defensiva, com a
manifestação de uma pluralidade de atores da sociedade
civil que se vêem espoliados de seus direitos e demandam a
reafirmação ou mesmo a ampliação de uma
contratualidade democrática que, no entanto, não
questionam.
A postura de defesa da cidadania não pode
querer reeditar as formas democráticas de regulação
social que expiram com o século XX. A luta pela cidadania
necessita de novos conteúdos e novas formas. Necessita abrir
perspectivas no duplo sentido da negação da sociedade
de mercado como modelo de sociabilidade e da instituição
de um novo contrato social onde a realização das
potencialidades humanas e a questão social – isto é,
a garantia e a efetivação dos direitos –
determinem as novas esferas públicas e as relações
com a economia e a política.
Trata-se de buscar
reconstruir o tecido social e recuperar para os cidadãos –
seja no plano individual, seja no plano das suas representações
coletivas – sua autonomia e seu poder de decisão sobre
suas vidas e sobre a criação novas formas de regulação
social, de novas formas da relação público-privado.
A luta pela cidadania está intimamente associada à
construção de novas formas de regulação
democrática de nossas sociedades. Cidadania e democracia são
dimensões de um mesmo processo que aponta para a construção
de capacidades na sociedade para que todos possam saber escolher,
poder escolher e efetivar suas escolhas.
A formação
para a cidadania, portanto, é um tema crucial. O sentido que
se dê a ela desenhará um determinado projeto de
sociedade. Não é por outra razão que é um
conceito em disputa apropriado por todo o espectro das forças
políticas, muitas vezes servindo para processos de cooptação
e manipulação. A formação para a
cidadania é determinada historicamente, parte do
reconhecimento da realidade que vivemos. Ela é a força
e a fraqueza desta conjuntura. É a força porque poder
aglutinador. É a fraqueza porque ainda não prefigura
novas formas de organização social.
Nenhum comentário:
Postar um comentário