A Amazônia que morre
Por Lúcio Flávio Pinto
16.12.2010 - Fui um crítico constante da hidrelétrica de Tucuruí durante sua construção, de 1975 a 1984, ano em que a usina instalada sobre o leito do rio Tocantins, no Pará, foi inaugurada, como a quarta maior do mundo. Mas não era um crítico à distância: estava sempre na obra. E, por incrível que pareça, conversando com os “barrageiros”, que me atendiam.
Certa vez, um deles, para me demonstrar que todos ganhariam com a hidrelétrica, me levou para percorrer as novas cidades. Elas estavam sendo preparadas para receber a população que seria remanejada da beira do rio para a formação do reservatório. O futuro lago artificial, o segundo maior do Brasil, alagaria uma área de três mil quilômetros quadrados (mais de duas vezes o tamanho de Belém, a capital do Estado, com seus 1,4 milhão de habitantes).
O engenheiro tinha todos os motivos – mas os seus motivos – para achar que os ribeirinhos viveriam muito melhor nas novas cidades. Lá eles teriam casas de alvenaria, ruas pavimentadas, água, luz e todos os serviços básicos, que não existiam na margem do rio. Mas eu não tinha dúvida de que os remanejados não iam partilhar a convicção do técnico.
É claro que eles estariam em melhores condições materiais num núcleo urbano planejado. Mas lhes faltaria no novo domicílio algo que todas essas vantagens não seriam capazes de compensar: o próprio rio.
O Tocantins era sua rua, sua fonte de água, de alimento, de trabalho, de vida. Depois de tantas gerações se sucedendo na margem do vasto curso d’água, tirar dele as vantagens, minimizando os prejuízos eventuais, era o grande patrimônio dessa população. Um aprendizado de séculos. Conhecimento experimental, empírico, sofrido, valioso, único.
Subitamente, são remanejados rigorosamente manu militari (o primeiro presidente da Eletronorte, subsidiária da Eletrobrás responsável pela hidrelétrica, foi um coronel-engenheiro do Exército, Raul Garcia Llano). O legado de séculos no trato com o ciclo das águas, subindo e descendo por turnos semestrais, se tornou inútil na terra firme, longe do rio, em ambiente pouco conhecido.
Pelos critérios quantitativos, o engenheiro podia provar matematicamente que a mudança foi positiva. Por essa régua, também é superavitário o balanço da transformação que ocorreu na Amazônia no último meio século, principalmente em função de “grandes projetos”, como o de Tucuruí, que representou investimento superior a 10 bilhões de dólares.
Mas o triunfalismo da história oficial se vale da ausência de um índice capaz de medir e traduzir numericamente a felicidade. Se houvesse esse indicador de satisfação, ele revelaria a tristeza do homem obrigado a trocar o rio à sua porta pela casa de alvenaria no meio da mata – que, aliás, desapareceu.
O homem da Amazônia é detalhe ou enfeite no “modelo” (que nada tem de modelar) de integração forçada da região ao país e ao mundo. Modelo definido a partir de fora para fazer a vontade do migrante, seja ele pessoa física ou empresa, João da Silva ou Vale do Rio Doce, nascido no país ou vindo do exterior (quanto mais distante, mais poderoso).
Para a “modernização” compulsória pouco importa que o nativo esteja ou não feliz. Seu mundo está condenado a desaparecer. Tudo que é considerado primitivo, atrasado e isolado será progressivamente esmagado pela máquina que produz mercadoria, à medida que ela vai avançando sobre as novas áreas. Seu rótulo é a única fonte válida de valor, do que interessa ao mercado. O mais é descartável, inútil.
São Félix do Xingu é uma dessas fronteiras em brutal mutação. Conheci o município em 1976. Fiquei hospedado numa pensão na cidade, que não tinha hotel. Dividia o quarto com três pessoas. Todas usavam redes. Um dos homens, sem se mexer, cuspia para o alto durante a noite. Eu acordava enojado pelo barulho.
Mas que jeito? Não havia para onde ir na cidade. Melhorou quando fizemos uma longa excursão de “voadeira” (designação local para lancha) pelo rio Fresco, até suas nascentes, na divisa do Pará com Mato Grosso. Foi uma das minhas melhores viagens. O lugar era pouco menos do que um paraíso.
Mas quem o percorrer, hoje, não verá mais esse nirvana. O rio foi contaminado pelo mercúrio dos garimpos de ouro. Os Kayapó que moram às suas margens, no auge da exploração, tiveram que substituir o mergulho no rio pelo banho de chuveiro para evitar a contaminação.
Voltei a Belém ainda mais convicto da minha posição, contrária à continuação da estrada que ligaria Xinguara a São Félix. Ela levaria o caos do Araguaia/Tocantins ao Xingu, impedindo uma forma mais inteligente de uso da terra.
Graças ao debate que se suscitou, as obras ficaram paradas por algum tempo. Mas logo as máquinas voltaram à ativa e a estrada foi rasgada. A irracionalidade, que tanto mal causou ao Araguaia/Tocantins, fez pousada no Xingu. Sua principal atividade econômica, a pecuária, era impensável três décadas antes. Parece que andamos para trás.
No auge do verão deste ano, em agosto, 30% dos quase 65 mil focos de calor registrados pelo satélite do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, de São Paulo), estavam localizados em São Félix. Quase 16 mil hectares de floresta densa foram postos abaixo e em seu lugar plantado capim para os bois pastarem – os animais irracionais e seus donos, a eles equivalentes. Só um ser irracional pode ainda achar que trocar floresta por pastagens é lucrativo ou mesmo natural.
As imagens do satélite revelaram que de agosto de 2009 a agosto de 2010 foram destruídos 16 mil hectares de florestas primárias em São Félix do Xingu, grande parte delas substituídas por pastagens. Em 15 dias, entre 21 de outubro e 5 de novembro, técnicos do Ibama constataram que 1,9 mil hectares de florestas nativas foram derrubados com a mesma finalidade. Os transgressores foram multados em 12,3 milhões de reais.
Numa outra área, de 590 hectares, o crime ambiental caracterizado foi a queima de lavouras e pastagens para a realização de novos plantios. Quase um quarto dos fazendeiros estabelecidos na região toca fogo na mata que sobrevive ao desmatamento ou nas roças e pastos degradados. A multa para esses casos foi de R$ 66 milhões.
Observa-se que a multa para a derrubada da floresta original foi de R$ 6,5 mil por cada hectare desmatado. Para as lavouras ou pastagens queimadas, a sanção foi de R$ 1,13 milhão. A razão, à vista do tal “modelo” de ocupação da Amazônia, é evidente: pastos e lavouras são benfeitorias, com maior valor agregado. Já a floresta, gerada através de processo natural, não tem incorporação de valor, que só é conferido pelo homem, cuja presença substitui o domínio da natureza.
Por isso, a punição para quem a destrói é mais branda (admitindo-se que as multas venham um dia a ser pagas, o que raramente acontece). Inversão total de valores, é claro, mas de acordo com a irracionalidade que preside os atos humanos na última grande fronteira da Terra.
Apesar de todas as campanhas de conscientização e das medidas de repressão e punição, ainda parece muito distante de ser alcançado um objetivo primário, que instauraria a civilização humana na Amazônia: a abolição do fogo como ferramenta para o trato da terra. Esse conhecimento, universalizado no meio técnico, não consegue passar dos gabinetes e laboratórios para as práticas usuais. A distância entre o saber e o fazer se tornou amazônica. Na Amazônia que interessa: a das quantidades
Retirado do sítio: http://www.iela.ufsc.br/?page=noticia&id=1609
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