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Página específica para a 3ª edição do curso de especialização em Gestão Pública e Sociedade:

terça-feira, 21 de julho de 2009

Público versus mercantil

Público versus mercantil
Emir Sader


Uma das operações teóricas e políticas mais bem sucedidas do neoliberalismo foi instaurar os debates em torno da oposição estatal/privado. Deslocar o debate para esse eixo impõem um campo de debate duplamente favorável ao liberalismo, porque por um lado permite uma mais fácil desqualificação do estatal e, por outro, desloca um dos termos essenciais do debate – o público.

O estatal é caracterizado nesse esquema como ineficiente, aquele que cobra impostos e devolve maus serviços à população, como burocrático, como corrupto, como opressor. Enquanto que o privado é promovido como espaço de liberdade individual, de criação, de imaginação, de dinamismo.

O Estado brasileiro tem sido facilmente desqualificável, porque tornou-se um Estado privatizado. Um Estado que arrecada do mundo do trabalho e transfere recursos para o setor financeiro, gastando mais com o pagamento dos juros da dívida do que com educação e saúde. Um Estado que paga taxas de juros estratosféricas ao capital financeiro, mas remunera pessimamente seus professores e seus trabalhadores do setor de saúde pública, aqueles mesmos que prestam serviços à massa da população. Um Estado que não assegura os direitos básicos para a grande maioria da população, mas que dilapidou o patrimônio público em processos de privatização financiados com o próprio dinheiro público. Por oposição, o privado surge como polo privilegiado.

Porém a oposição estatal/privado reduz o debate a dois termos que na realidade não são necessariamente contraditórios, porque o estatal não é um polo, mas um campo de disputa, que nos nossos tempos é hegemonizado pelos interesses privados. Já o privado não é a esfera dos indivíduos, mas os interesses mercantis - como se vê nos processos de privatização, que não constituíram processos de desestatização em favor dos indivíduos, mas das grandes corporações privadas, aquelas que dominam o mercado – verdadeira cara por trás da esfera privada no neoliberalismo. O polo oposto ao estatal, nesse esquema, é a negação da cidadania, é o reino do mercado, aquele que, negando os direitos – não há lugar para eles no mercado – nega a cidadania, e indivíduo como sujeito de direitos.

A polarização essencial não se dá entre o estatal e o privado, mas entre o público e o mercantil. Dentro do próprio Estado se desenvolve, de forma surda ou aberta, o conflito e a luta entre os que defendem os interesses públicos e os interesses mercantis, entre o que Pierre Bourdieu chamou dos braços esquerdo e direito do Estado.

O público se fundamente nos cidadãos – nos indivíduos como sujeitos de direitos –, enquanto o mercado congrega aos componentes do mercado – os consumidores, os investidores. O primeiro tem na sua essência a universalização de direitos, o segundo, a mercantilização do acesso ao que deveriam ser direitos – educação, saúde, habitação, saneamento básico, lazer, cultura. O público se identifica com a democracia, seja pelo compromisso com a universalização dos direitos, seja pela possibilidade de controle pela cidadania, enquanto que ao mercantilizar esferas da sociedade – privatizando-as – se retira da cidadania a capacidade de controle sobre elas.

Apesar dos avanços da mercantilização nos anos noventa no Brasil, houve também o fortalecimento de iniciativas de caráter público, como são, como suas diferentes expressões, as políticas de orçamento participativo e os assentamentos dos trabalhadores sem terra. A TV Cultura, na sua concepção original - hoje infelizmente bastante enfraquecida, por depender ela também da publicidade privada - foi outra excelente expressão de políticas públicas.

A construção de uma democracia social – uma outra forma de falar da superação do neoliberalismo - no Brasil requer uma reforma profunda do Estado brasileiro, refundando-o em torno da esfera pública. Mas antes de tudo, requer a reposição do conjunto dos debates políticos e teóricos em torno da polarização público/mercantil.

As primeiras orientações do governo Lula não parecem tampouco inovar neste plano, desqualificando o servidor público, não privilegiando o fortalecimento da educação e da saúde públicas, perdendo a chance de fazer uma reforma tributária socialmente justa, desconhecendo a centralidade da esfera pública e o tema estratégico da reforma democrática do Estado – de que o orçamento participativo, em modalidades inovadas, é elemento essencial. A saída do modelo neoliberal não depende apenas de novas políticas econômicas, mas de assumir a centralidade do público e a luta contra a mercantilização - chave da democracia social, da prioridade do social com que se comprometeu o novo governo ao triunfar eleitoralmente. Mudança implica mudança econômica, política, social, cultural, mas também mudança do campo teórico de análise e de referência.

* Emir Sader, 59, é professor da USP e da UERJ, autor, entre outros, de A vingança da História (Boitempo Editorial).

Extraido do sítio: América Latina em movimento, no endereço: http://alainet.org/active/3804&lang=es

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