Adilson Marques GENNARI1
a revolução é feita pela classe que não é mais considerada como uma
classe na sociedade, não é mais reconhecida como tal, e que já é em
si mesma a expressão da dissolução de todas as classes, de todas as
nacionalidades, etc.,no interior da sociedade atual.
Karl Marx
Karl Marx
Uma crise política, ideológica, econômica e social sem precedentes tomou conta do mundo após a derrocada do chamado socialismo real. Sob os escombros da velha União Soviética e sob os olhares estupefatos de milhões de pessoas que apostavam numa transição para além do capitalismo, ergueu-se o mais novo e vigoroso império: o império dos Estados Unidos da América.
Foram aproximadamente três décadas de profundas mudanças estruturais pelas quais transitamos genericamente, de um mundo bipolar, que confrontava capitalismo em crise e socialismo real stalinista agônico, passando por um processo de intensa revolução tecnológica também sem precedentes (jamais se viu uma tecnologia tão racionalizadora de força de trabalho) e no campo ideológico, sobre a crise da esquerda marchou triunfante a ascensão do ideário neoliberal que atingiu uma quase hegemonia e que não se cansou de anunciar o fim da história e a vitória definitiva da sociedade democrática e de mercado, leia-se capitalista.
Nesse sentido, o livro O Ocidente e o Resto de Luiz Fernando Ayerbe torna-se de leitura fundamental, posto que atualíssimo e que traz como eixo uma apresentação e discussão da ascensão e construção da ideologia e da vertente culturalista que vem permeando a política externa e interna na consolidação dos Estados Unidos como nação hegemônica e imperial.
O trabalho de Ayerbe apresenta brilhantemente, através de uma acurada pesquisa bibliográfica e documental a postura do governo estadunidense frente aos dilemas da atualidade e como o “império” se capacitou intelectualmente para o desafio de um mundo globalizado e uno sob sua hegemonia. Segundo Ayerbe, na cultura do império, “os países são divididos de acordo com sua proximidade e atitude em relação ao capitalismo liberal. A democracia representativa, a liberdade de mercado e o império da lei compõem um núcleo comum cujo reconhecimento, por parte do ‘resto’, torna a diversidade negociável” (p.89).
A questão da identidade regional da América latina é outro aspecto crucial da obra de Ayerbe. Sem sombra de dúvida, a América Latina possui uma extensa obra no que tange à sua contribuição para a cultura universal. A criatividade da região vai desde contribuições no campo da ciência econômica – como no caso do pensamento clássico e original da CEPAL, até, por exemplo, o realismo fantástico no campo da literatura. Os novos desafios colocados pela nova ordem global estão a exigir um novo esforço de criatividade Latino-americana que já pode contar com uma significativa contribuição, principalmente sobre abordagens de temas relacionados à questão da globalização, das comunicações, das novas relações de trabalho, de comércio e de direitos civis de resistência, ou seja, está na ordem do dia disponibilizar todas as forças criativas para fazer face aos dilemas colocados pela nova configuração do capitalismo e sua correspondente cultura do império.
No atual quadro complexo da realidade, colocam-se para a reflexão alguns grandes desafios, como por exemplo, em primeiro lugar, enfrentar a questão de que o capitalismo não pode abrir mão de sua contradição fundamental, qual seja, a apropriação privada do trabalho coletivo, e em segundo lugar e mais importante, entender que às contradições clássicas, apontadas por Marx, somam-se novas contradições. Destacamos pela relevância, em primeiro lugar, a mudança fundamental nas chamadas forças produtivas, que foram sobejamente objeto de consideração e elogios por parte da análise clássica marxiana e que entretanto, transmutaram-se em forças destrutivas. Para Mészáros,
a este respeito, um conceito que requer uma reavaliação
fundamental é o de ‘avanço produtivo’ do capital, pois numa
época em que a vertiginosa produtividade do capital o capacita a
engolir a totalidade dos recursos humanos e materiais do nosso
planeta, e vomitá-lo de volta na forma de maquinaria e
‘produtos de consumo de massa’ cronicamente subutilizados – e
muito pior: imensa acumulação de armamentos voltados à potencial
destruição da civilização por centenas de vezes –, em uma situação
como esta a própria produtividade se transforma num conceito
enormemente problemático, já que parece ser inseparável de uma
fatal destrutividade. (2002, p.527)
Outro autor que também tratou das contradições destrutivas no capitalismo atual foi Altvater que ressaltou a impossibilidade de se espraiarem para todo o globo as tendências verificadas nos Estados Unidos ou as contradições da american way life com sua forma perdulária e destrutiva em relação ao meio ambiente.
O império do Norte e o sujeito da emancipação
Em segundo lugar, é preciso destacar, como fez várias vezes Robert Kurz, que nunca se viu na história do capitalismo, nem mesmo em suas tendências atuais, ligadas à terceira revolução tecnológica, uma técnica cuja capacidade de racioanalização é muito superior à capacidade de criar ocupações. Para Kurz (1996), “a eficácia de uma fase expansiva, criadora de empregos, deixou de existir”. É no próprio setor de bens de capital e congêneres onde a radicalização da revolução se mostra com toda clareza e radicalidade. O resultado está expresso em todas as estatísticas existentes e de certo modo as ultrapassam frente as mutações no chamado mundo do trabalho. O fato é que a população excedente ganhou uma dimensão nunca dantes imaginada, recriando um exército industrial de reserva efetivamente mundializado, com notórios impactos na questão da democracia e da manipulação social.
É nesse cenário que uma nova esquerda com novas características vem emergindo e sendo representada nas reuniões e fóruns internacionais que se sucedem. Tal esquerda vem sendo gestada no calor dos debates nos quais não faltam ingredientes contra a idéia de partido único, de nacionalismo e da revolução num só país, do culto à personalidade, da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, da questão da destruição ambiental e da necessidade de novas modalidades de sociabilidade sustentável e auto-gestionária, etc, mas sempre reafirmando a importância do próprio movimento social de massas e extra-parlamentar. Do trágico enterro da esquerda tradicional e do totalitarismo econômico, político e cultural do império, começa a surgir uma esquerda renovada, anti-capitalista e multifacetada.
O livro de Ayerbe tem a qualidade fundamental de tocar nas questões mais delicadas e centrais do debate atual no que tange ao destino e à luta social e ao surgimento de novos e variados “atores sociais”. Ayerbe faz um balanço da bibliografia atual existente e ressalta a emergência de novas práticas emancipatórias apontadas por um conjunto expressivo de autores que se debruçaram sobre a questão das possibilidades de mudança social hoje. Segundo a literatura rastreada por Ayerbe, “a emergência dos movimentos sociais coloca em questão não apenas o reducionismo classista do marxismo ortodoxo, mas a concepção liberal de democracia.” É importante notar que aqui se coloca o dedo no epicentro da crise atual. É necessário enfrentar a questão de qual o papel da centralidade do trabalho na nova configuração do capital no século XXI. É fundamental reconhecer que são os novos movimentos que articulam novos direitos, os quais emergem com força no cenário das novas lutas sociais emancipatórias.
Entretanto, é necessário não perder de vista que o movimento dos direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais, dos sem terra, dos sem teto, dos aposentados, etc, são, enquanto movimentos societais, também movimento de trabalhadores, de modo que nos novos movimentos emancipatórios, a classe se repõe na dialética de ser classe e não ser classe, ou seja, o trabalho é o centro nuclear afirmado como eixo da sociabilidade humana, mas o centro nuclear negado, enquanto trabalho alienado, trabalho reificado, ou simplesmente como movimento reduzido a reivindicações corporativas e sindicais.
Entendemos que, somente nesta perspectiva podemos repensar a questão do sujeito revolucionário superando o reducionismo e cientificismo do marxismo acadêmico do século XX. Para o próprio Marx, “a revolução é feita pela classe que não é mais considerada como uma classe na sociedade, não é mais reconhecida como tal, e que já é em si mesma a expressão da dissolução de todas as classes, de todas as nacionalidades, etc., no interior da sociedade atual.” (1986: p. 108). Parece-nos que aqui a questão vai mais além do apontado reducionismo classista. Somente nesta direção parece plausível repensar uma sociedade livre, de homens livres, conscientemente organizados como perspectiva.
É nesse cenário que uma nova esquerda com novas características vem emergindo e sendo representada nas reuniões e fóruns internacionais que se sucedem. Tal esquerda vem sendo gestada no calor dos debates nos quais não faltam ingredientes contra a idéia de partido único, de nacionalismo e da revolução num só país, do culto à personalidade, da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, da questão da destruição ambiental e da necessidade de novas modalidades de sociabilidade sustentável e auto-gestionária, etc, mas sempre reafirmando a importância do próprio movimento social de massas e extra-parlamentar. Do trágico enterro da esquerda tradicional e do totalitarismo econômico, político e cultural do império, começa a surgir uma esquerda renovada, anti-capitalista e multifacetada.
O livro de Ayerbe tem a qualidade fundamental de tocar nas questões mais delicadas e centrais do debate atual no que tange ao destino e à luta social e ao surgimento de novos e variados “atores sociais”. Ayerbe faz um balanço da bibliografia atual existente e ressalta a emergência de novas práticas emancipatórias apontadas por um conjunto expressivo de autores que se debruçaram sobre a questão das possibilidades de mudança social hoje. Segundo a literatura rastreada por Ayerbe, “a emergência dos movimentos sociais coloca em questão não apenas o reducionismo classista do marxismo ortodoxo, mas a concepção liberal de democracia.” É importante notar que aqui se coloca o dedo no epicentro da crise atual. É necessário enfrentar a questão de qual o papel da centralidade do trabalho na nova configuração do capital no século XXI. É fundamental reconhecer que são os novos movimentos que articulam novos direitos, os quais emergem com força no cenário das novas lutas sociais emancipatórias.
Entretanto, é necessário não perder de vista que o movimento dos direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais, dos sem terra, dos sem teto, dos aposentados, etc, são, enquanto movimentos societais, também movimento de trabalhadores, de modo que nos novos movimentos emancipatórios, a classe se repõe na dialética de ser classe e não ser classe, ou seja, o trabalho é o centro nuclear afirmado como eixo da sociabilidade humana, mas o centro nuclear negado, enquanto trabalho alienado, trabalho reificado, ou simplesmente como movimento reduzido a reivindicações corporativas e sindicais.
Entendemos que, somente nesta perspectiva podemos repensar a questão do sujeito revolucionário superando o reducionismo e cientificismo do marxismo acadêmico do século XX. Para o próprio Marx, “a revolução é feita pela classe que não é mais considerada como uma classe na sociedade, não é mais reconhecida como tal, e que já é em si mesma a expressão da dissolução de todas as classes, de todas as nacionalidades, etc., no interior da sociedade atual.” (1986: p. 108). Parece-nos que aqui a questão vai mais além do apontado reducionismo classista. Somente nesta direção parece plausível repensar uma sociedade livre, de homens livres, conscientemente organizados como perspectiva.
1 Departamento de Economia – Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – 14800-901 – Araraquara – SP Adilson Marques Gennari 146
Estudos de Sociologia, Araraquara, 15, 145-148, 2003
Referências
ALTVATER, E. O preço da riqueza. São Paulo: Ed. UNESP, 1995.
KURZ, R. O torpor do capitalismo. Folha de S. Paulo, São Paulo, p.5-14, 11 fev. 1996.
MARX, K. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1986.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
AYERBE, L. F. O Ocidente e o resto: a América Latina e o Caribe na cultura do
império. Buenos Aires: Clacso, 2003.
148 Estudos de Sociologia, Araraquara, 15, 145-148, 2003
Passo com o intuito de parabenizar a iniciativa do prof. Édi. Não há caminho mais adequado ao intelectual digno deste nome do que o das turbulências dialéticas visando ao problematizar das coisas, sobretudo, fazendo silêncios falarem. Valeu!!!
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